sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Crônica - 20251114

Acho que vi Cristo ontem

Cercado por soldados e brutalizado

E percebi, finalmente, que o mundo não pode me cegar para seus horrores

 

Assim, com Cristo sofrerei todos os dias

Em Cristo morrerei todos os dias

E anunciarei sua ressurreição

 

***

 

Sde Teiman. Prefiro me referir a tal lugar como o que realmente é: campo de tortura, não de mera detenção. Vi as notícias sobre o vazamento do vídeo com mais de uma semana de atraso. O próprio vazamento ocorreu há muito mais tempo, ainda em agosto de 2024, mas o caso voltou ao noticiário porque, no último 2 de novembro, a Advogada Militar Geral das Forças de Defesa de Israel admitiu ter autorizado a divulgação do vídeo.

Em pronunciamento, o Primeiro Ministro referiu-se ao vazamento como um grave golpe contra a imagem de Israel no plano internacional, talvez o pior "ataque hasbara" desde a criação do Estado israelense. Uma curta leitura sobre o termo hasbara revela que esse é o termo utilizado por lá para caracterizar ações e políticas de construção da reputação do país. O termo anterior era "propaganda", mas foi deixado porque essa palavra passou a acumular um sentido pejorativo -- talvez essa conotação/associação seja mais forte na língua inglesa do que na língua portuguesa. De qualquer modo, eu não encontrei qualquer manifestação dele sobre as alegações de abuso e tortura sofridas pelos detentos -- que incluem mulheres e crianças. O que encontrei, sem muito esforço, foram informações sobre as múltiplas vezes em que ele se referiu à população palestina como "selvagens". Os soldados acusados dos abusos, por sua vez, manifestaram-se publicamente após seu indiciamento e afirmaram que o vazamento do vídeo comprometeu a lisura/neutralidade do processo criminal. Nenhum negou os abusos. Se queixaram de que seu processo será parcial, mas não lhes ocorreu negar terem praticado crimes abomináveis, nem mesmo numa época em que alegar manipulação de vídeo através de ferramentas tecnológicas é cada vez mais plausível. Não é difícil concluir que eles simplesmente não acreditam que estão errados. Quão vil alguém precisa ser para ouvir acusações de que seu país tortura crianças e, ao invés de reforçar que as alegações serão tratadas com absoluta seriedade, ao invés de garantir que seu país não viola direitos humanos, ao invés de (pelo menos) tentar sugerir que as evidências foram forjadas, decide respondê-las com queixas sobre relações públicas?

Eu não consigo entender. A maldade dessas atitudes é pior do que banal. Mas não me permito chamá-la de "monstruosa". Fazê-lo não seria muito diferente de (também) me referir a eles como "selvagens" e me refugiar no conforto de ser mais "humano".

É necessário seguir. Sim, predadores vivem entre nós e machucam outras pessoas -- não apenas em zonas de guerra, mas aqui também. O horror não está tão longe, afinal de contas. E isso eu não posso ignorar.

 

***

 

Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 15*

 

 31. Todos os dias, Irmãos, morro (juro-o) pela glória que tenho de vós em Jesus Cristo Nosso Senhor.

domingo, 13 de julho de 2025

E a morte não terá domínio

Publicação original em 20 de junho de 2010.


"E a morte não terá domínio" (And death shall have no dominion),

por Dylan Thomas

(Tradução de Sérgio Barroso revista em 13 de julho de 2025)


E a morte não terá domínio.

Os mortos, despidos, se unirão

Ao senhor do vento e à lua poente;

Quando forem brancos os ossos e os ossos brancos se forem,

Calçarão estrelas dos pés à cabeça;

Mesmo que enlouqueçam, volverão sãos;

Mesmo que se afoguem, reemergirão;

Perdem-se os amantes, mas o amor, não;

E a morte não terá domínio.


E a morte não terá domínio.

Sob as voltas do mar

Os que há muito jazem podem voltar;

Sob tortura até a fibra romper,

Mesmo em suplício, não ousam ceder;

A fé, em suas mãos, se partirá,

E monstruoso mal, através deles, passará;

Mas, mesmo partidos, não se quebrarão;

E a morte não terá domínio.


E a morte não terá domínio.

Aos seus ouvidos, as gaivotas podem nunca mais cantar

No mar, as ondas podem nunca mais soar;

Onde a flor soprou, talvez a flor

Contra a chuva, nunca mais possa levantar;

Mas mesmo loucas e mortas como pregos em portas,

Suas coroas ladearão as margaridas;

Vão contra o sol até que o sol não venha mais,

E a morte não terá domínio.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Breve comentário sobre a carta "Pausing AI Developments Isn’t Enough. We Need to Shut it All Down", de Yudkowsky

Postado como comentário a uma chamada no website Hacker News em 25 de maio de 2025. A carta aberta original redigida por Eliezer Yudkowsky foi publicada no portal da Revista Time em 29 de março de 2023.

According to Mr. Yudkowsky, what it takes to get us out of danger's way is "a plan", which he surely would back up... A plan -- not direct action against the system which made this whole situation possible in the first place. I understand his preoccupation, but he makes it seem like salvation for humanity is just a matter of the industry going easy with this. It reminds me of Chinese factories and coal generators going offline for a couple of days so there can be beautiful blue skies in Beijing by the time Victory Day comes. Never mind that we, the powerless, are already shaken by the menace of nuclear war, the rise of neo-fascism, and unprecedented natural disasters. So we're supposed to believe the whole danger lies with AI now? Why should we care when presented with another danger if we never ceased to be surrounded by danger in the first place? Respectfully, I believe Mr. Yudkowsky's opinions are not radical enough. C'mon, Eliezer, what would Sarah Connor do? Me, if someone came up with a "Terminator 2: Judgement Day" kind of plan, I would surely back it up.

Não se engane. Yudkowsky construiu sua carreira aliando-se a criptocornos e bilionários — dentre eles líderes de algumas das mais perigosas e imorais corporações de toda a história. Ele é considerado um dos mais proeminentes intelectuais divulgadores do projeto ideológico entitulado "altruismo eficaz", movimento que, além de se preocupar com o avanço da indústria tecnológica, aparentemente também precisa dividir esforços para mitigar uma preocupante cultura de assédio sexual que se formou no seu meio. Além disso, os maiores nomes do altruismo eficaz são notoriamente envolvidos com filantropia, porém notoriamente tolerantes com acumuladores de riqueza e com a hegemonia do Norte global.

Os donos do poder continuam tentando escrever nossa história no nosso lugar. Querem tudo: o protagonismo, o dinheiro, o direito de determinar o que é o bom e quem é bom. O que há entre eles e nós não é apenas uma divergência de prioridades, mas uma dissonância radical — ontológica, epistêmica, ética, discursiva, axiológica. É como se vivêssemos em realidades distintas.

Metáforas que evocam "conflito" me soam bastante adequadas para descrever essa situação. E tudo que remete a "resistência", mesmo que metaforicamente, também me soa justo agora.